Experiência transformadora
A doença impactou a vida do cirurgião cardiovascular Aleksander Dobrianskyj, de 66 anos, que passou 30 dias internado por causa do problema de saúde, metade deles na UTI.
Durante 50 anos, o cirurgião cardiovascular Aleksander Dobrianskyj, de 66, não teve um credo norteando sua jornada. Tudo mudou nos últimos dias de março deste ano quando ele se viu obrigado a abandonar a condição de médico para se tornar paciente, um a mais na lista de milhares de brasileiros infectados pelo novo coronavírus. Internado durante um mês, metade desse tempo em estado gravíssimo, ele vivenciou por dois momentos a experiência de quase morte, algo que o fez repensar no homem e no profissional em que se transformou, longe dos princípios da fé cristã.
"Apesar de não me considerar um crédulo, sempre tive muito respeito pelos pacientes. Nunca deixei de ter a técnica, a prática, e a compaixão, porque sem esses três elementos você não é médico." Até ser surpreendido pelo coronavírus, que ele considera de uma infectividade pavorosa e de longa permanência entre nós, o médico se sentia como um super-homem, saudável e ativo após os 60 anos. "Para mim, o vírus funcionou como a kriptonita para o super-homem. Me derrubou."
Aleksander Dobrianskyj é um dos profissionais mais respeitados de Goiás em sua área de atuação. Paulistano, filho de pais ucranianos que chegaram ao Brasil como refugiados que enfrentaram o Holodomor, uma fome genocida imposta por Josef Stalin no comando da então União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), aportou em território goiano após se graduar na Escola de Medicina da Universidade Federal do Paraná e concluir a residência médica no Instituto Dante Pazanezze de Cardiologia, na capital paulista, sob o olhar de Adib Jatene.
A Jatene, médico internacionalmente respeitado, são atribuídas inovações em cirurgias do coração. Ele também foi ministro da saúde por duas vezes no Brasil.
Em 1992, no Hospital Santa Genoveva, em Goiânia, esteve à frente da equipe que realizou o primeiro transplante cardíaco em Goiás. "O dr. Francisco Ludovico bancou o início do projeto, mas depois não teve continuidade por ser um procedimento mal remunerado. Tínhamos o suprassumo em termos de especialistas para transplantes cardíacos e renais. Infelizmente no Brasil se investe em estádios e não em hospitais." Hoje, o cirurgião atua no Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás (HC/UFG), no Hospital do Coração Anis Rassi, no Hospital do Coração de Goiás e no Hospital da Criança, todos na capital.
Entre seus pares é conhecido como "o bisturi de ouro da cirurgia cardíaca infantil", técnica que aprimorou a partir da residência médica com Adib Jatene. Aleksander Dobrianskyj tem muito orgulho do papel que desempenha no HC/UFG, "um repositário de doentes graves" onde, ao lado de colegas, aplica seu conhecimento e colhe resultados semelhantes aos da Cleveland Clinic (Ohio), considerada uma das melhores instituições para tratamento cardíaco nos Estados Unidos. "Atendemos uma população pobre, desprovida de recursos e não ficamos a dever nada a ninguém" , afirma.
Diagnóstico
A Covid-19 chegou à vida do médico sem se apresentar. "Inicialmente imaginei que estava com sinusite e me mediquei por conta própria, mas alguma coisa não estava certa porque fui piorando muito." No dia 31 de março ele se internou no Hospital Anis Rassi e a primeira tomografia revelou alterações no pulmão, o que levou a equipe médica a pedir exame para Covid-19, confirmando o diagnóstico. Sem sintomas habituais da doença, como falta de ar, estava pronto para deixar o hospital no dia 6 de abril quando nova tomografia mostrou comprometimento de 70% dos pulmões, levando-o à Unidade de Tratamento Intensivo (UTI). "Cheguei à UTI em situação de emergência e tudo desandou. No dia seguinte fui para o tubo."
Dois profissionais atuaram decisivamente junto a Aleksander Dobrianskyj durante sua internação, o intensivista Hélvio Martins Gervásio e a infectologista Christiane Kobal. "As condutas para o tratamento desse vírus foram sendo atualizadas enquanto eu estava internado. No dia 1º de abril era uma e no dia 1º de maio, outra", diz ele sobre o esforço dos colegas. Durante 11 dias o médico precisou de ventilação mecânica. Foi entubado de forma tradicional e na posição prona, quando o paciente é colocado de bruços para melhorar a ventilação pulmonar, comprometida por coágulos. "Eu queria estar consciente para discutir os procedimentos. Sinto não ter participado. Essa é a parte que mais me dói".
Aleksander Dobrianskyj não arrisca dizer onde contraiu a Covid-19, mas tem convicção de que a infecção ocorreu em um dos ambientes de trabalho. "Posso ter atendido alguém aparentemente saudável, mas transmissor do vírus. Sempre me cuidei muito, não tinha doença pré-existente, nunca fumei, todas essas coisas que falamos para os pacientes. Foi um baque. Saí de um estado de doença para quase morte. O vírus não tem uma lógica, não tem como prever. É sorte ou azar." Enquanto ele estava internado, a mulher Virgínia e o casal de filhos adolescentes também fizeram testes. Ela e o menino positivaram, mas ambos não tiveram sintomas importantes. O médico acredita que, em seu caso, foi a idade que o levou a enfrentar uma situação de gravidade.
Plasma de convalescente fez parte do tratamento
O cirurgião foi o primeiro paciente de Goiás a receber plasma de convalescente de Covid-19 durante o tratamento, uma conduta considerada experimental. Ele elogia a colega Christiane Kobal por realizar uma videoconferência para discutir com hematologistas a questão ética da medida. "Minha esposa teve de assinar um termo autorizando, mas o soro de convalescente, que desenvolve anticorpos contra a doença, foi usado na gripe espanhola, quando milhões de pessoas morreram. Portanto, não é uma coisa nova." Nos primeiros dias de internação ele também foi submetido a doses de hidroxicloroquina, o medicamento alvo de muitos debates no Brasil.
"Tomei no início, mas logo foi suspensa. A cloroquina não me trouxe nenhum benefício. Ela funciona para fragmentar as proteínas que fazem a inclusão do vírus na célula, mas aparentemente não funciona em estado de doença instalada. Desde que recebeu alta, é comum o médico ser consultado sobre o que fez efeito em seu tratamento. "Tenho recebido muitas ligações, até mesmo do exterior." Entre os procedimentos adotados, ele cita o uso de corticoides, para tirar a inflamação pulmonar; de heparina, um anticoagulante e do plasma de convalescente da Covid-19.
A condição de paciente grave, trouxe para Aleksander Dobrianskyj uma certeza. Os familiares, do lado de fora, precisam ter maior amparo, "uma pessoa que faça a interface com os médicos, porque o boletim padronizado não é suficiente". Ele tem insistido nessa tese após saber do sofrimento da mulher que não conseguia ter informações sobre o que estava ocorrendo com ele. "É uma tortura para quem está do lado de fora e médico plantonista de UTI não tem tempo de conversar com familiares."
Cirurgião teve sinal sobrenatural
Neto de padre ortodoxo, que foi pároco em Prudentópolis (SP), Aleksander Dobrianskyj passou a rememorar as relações com a fé cristã na infância a partir de dois momentos que sentiu estar muito perto da morte durante sua internação. "Posso dizer que fui ateu durante 50 anos, mas isso ficou no passado."
Os dois episódios o fizeram lembrar de uma entrevista que considera marcante concedida pelo antropólogo Darcy Ribeiro pouco antes de morrer de câncer ao jornalista Roberto D´Ávila. À pergunta sobre o que faltava a ele, o fundador da Universidade de Brasília respondeu: "um credo".
Ele teve essa certeza ao abrir o olho, após a anestesia, e ver o pai num caixão no teto. "Quando meu olhar se aproximava, como um zoom, era eu que estava lá. Tive consciência do que estava acontecendo e prometi mudar se houvesse um sinal sobrenatural". Ele se lembra que antes também sentiu o calor de uma espécie de larva vulcânica que estava no fundo de um poço ao qual desceu devagar em meio a um tipo de alucinação. O cirurgião, que voltou à ativa, tem certeza de que as orações de amigos e familiares estão entre os fatores que influenciaram na recuperação, além da dedicação do corpo clínico.
Para Aleksander Dobrianskyj, a pandemia do novo coronavírus é equivalente a uma guerra. "É difícil ouvir um 'e daí?' do nosso timoneiro-mor. Ele deveria entender que cada pessoa que morre com essa doença está deixando de trabalhar, de pagar imposto e de contribuir com o Estado, além de deixar a família na miséria. São pessoas, e contribuintes em última análise", comentou ele sobre a frase proferida pelo presidente Jair Bolsonaro quando o Brasil ultrapassou a marca de 5 mil mortos por Covid-19.
Matéria veiculada sábado (06/06) na Página 23 do jornal O Popular.